quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

15 de novembro de 1971

Sete e — ah! — um minuto da manhã. Tento levantar-me. Fico de pé, visto-me,
lavo o rosto, escovo os dentes tomo vitaminas, etc. Depois disso, volto imediatamente
para a cama. A dor de cabeça está forte demais para ser enfrentada.
A vergonha também. Dia maravilhoso — o que posso ver dele, por entre os
olhos apertados. Céu e oceano azuis. Vazia a faixa de praia ensolarada. Ar fresco e
revigorante.
Não posso falar.
Oito e cinquenta e seis da manhã, O pátio silencioso, ao sol matinal. Olho para
baixo, por entre a balaustrada, e vejo o gramado verde, verdíssimo, os arbustos
admiravelmente bem cuidados, plantas formando um quadrado no centro, postes de
lampiões a cada lado. Mesas alvas, cadeiras.
Vejo o oceano, do outro lado do teto vermelho do hotel.
Nove e — ah! — seis da manhã. Desjejum no Salão do Diadema. Café puro e
uma torrada. Há mais doze co-mensais.
Aqui está demasiado ofuscante. A sala tremula minha frente. A garçonete entra
e divide meu campo visual, indo e vindo na névoa gelatinosa cor de limão que consigo
ver. Não sei por que vim aqui. Devia ter pedido que me servissem no quarto.
O sr. Farrapo, de olhos apertados, murmura em seu microfone.
Mais tarde. Não sei que horas são e nem me importo com isso. Volto a mim
novamente. Transição imprecisa. Acho que dormi. Ou desmaiei.
Opa! Como aqueles aviões voam baixo! Foi o que acabei de ver. O que vão
fazer? Pousar na praia?
Deve haver um aeroporto por perto.
Dez e trinta e sete da manhã. Deitado na cama, olho para o San Diego Union.
Não me lembro de tê-lo comprado. Devo ter estado em uma confusão mental antes.
Felizmente, consegui voltar.
Um jornal em seu centésimo quarto ano. Um bocado de tempo,
Decidi que não manteria mais contato com o mundo, mas aqui estou novamente.
Pequim já em nossas costas, O Mariner 9 localiza uma área quente em Marte. Em
Sacramento, reduzido o projeto para proteção costeira.
Esqueça, Collier. Você pode ir em frente, sem o noti ciário do dia,
Amanhã é lua nova. Isso é tudo quanto precisa saber.
Dou um passeio, inspirando o ar puro e fresco do oceano. Tem um cheiro
maravilhoso, Estou caminhando bem abaixo da torre - descobri que lá há um salão de
baile. Urna piscina olímpica fica à minha esquerda; água azul e cintilante. Vejo
espreguiçadeiras dobráveis alinhadas do outro lado; chalés, mesas de pingue-pongue.
Tudo deserto.
Grande dia. Sol quente, céu azul, nuvens rechonchudas.
Caminho perto das quadras de tênis. Quatro mulheres jogam em duplas; uma
visão de saiotes brancos e pele semelhante a couro. Além fica a praia. Uma centena de
metros, até as ondas baixas, de espuma branca.
Olho agora para o hotel, urna estrutura maciça, a torre como um minarete
gigante, octogonal, tendo em cada lado duas fileiras de pequenas janelas de sacada.
No alto, o que me parece uma torre de observação. Gostaria de saber se os hóspedes
têm permissão para subir até lá.
Caminho de volta. Mais além, um edifício moderno e alto; deve ser um
condomínio ou coisa assim. Tem uma aparência estranha, que contrasta com este
hotel.
Olho para uma antiga torre de tijolos, do outro lado do caminho. Deve ter sido a
casa de barcos do hotel, há muito tempo; hoje, é um restaurante. Vejo o que parece
uma via férrea fora de uso, Imagino que, outrora, os trens chegavam perto da praia,
trazendo hóspedes.
Estou sentado onde era a antiga sala de banhos; agora, é a Sala do Cassino.
Está fechada; tudo silencioso, O balcão deve medir quinze metros de comprimento,
com um formato e um acabamento bonitos. Numa das extremidades, vejo algo
semelhante a um relicário, tendo em seu interior a figura do que parece um mouro,
carregando uma luminária.
Quantos sapatos terão desgastado aquela barra de latão?
Ainda há pouco, estive observando as fotografias de artistas de cinema que
estiveram aqui. June Haver. Robert Stack. Kirk Douglas. Eva Marie Saint. Ronald
Reagan. Donna Reed. Um retorno às beldades da companhia de Pola Negri, retorno a
Mary Pickford, retorno a Marie Callahan, das Ziegfeld Follies. Como este lugar recua no
tempo!
Deixe-me recordar o momento: onze e vinte e seis da manhã.
Eu voltava através do pátio, para o meu quarto, quando vi um cartaz indicando
um Salão de História, instalado no porão.
Lugar intrigante. Fotografias como as existentes na Arcada. Um quarto de
dormir, como os que havia em 1890 ou Início de 1900. Objetos históricos do hotel
exibidos em vitrines - um prato, um menu, um porta-guardanapos, um ferro de passar
roupa, um telefone, um livro de registro de hóspedes.
Em um dos painéis, o programa de uma peça representada no teatro do hotel
(onde quer que se localizasse), a 20 de novembro de 1896: O pequeno ministro, de J.
M. Barrie, estrelada por uma atriz chamada Elise McKenna. Ao lado do programa, uma
foto dela: o rosto mais gloriosamente belo que já vi na vida.
Apaixonei-me por ela.
Bem típico de mim. Trinta e seis anos, uma migalha aqui, outra acolá, um
punhado de romances ao acaso, arremedando amor. Só que nada foi real, nada
perdurou.
E agora, chegado à condição terminal, após tanto tempo, libero finalmente o
coração, para uma mulher morta há vinte anos, no mínimo.
Belo espetáculo, Collier!
Aquele rosto me persegue.
Voltei lá para vê-lo; fiquei tanto tempo à frente do painel de exibição, que um
homem, entrando e saindo periodicamente por uma entrada de empregados próxima,
ficou olhando para mim, como se quisesse saber se eu me enraizara ali.
Elise McKenna. Nome adorável. Rosto deslumbrante.
Como eu adoraria sentar-me no teatro (numa foto de museu, descobri mais
tarde que se situava no salão de baile), a fim de vê-la representar! Ela deve ter sido
soberba.
E como saber? Talvez fosse péssima. Não, não acredito nisso,
Parece-me já ter ouvido seu nome antes. Não teria feito Peter Pan? Se for quem
imagino, foi uma atriz esplêndida.
E lindíssima, sem dúvida.
Não, é mais que beleza. O que me persegue e conquista é a expressão de seu
rosto. Aquela doce, suave e sincera expressão. Eu gostaria de tê-la conhecido.
Estou deitado aqui, observando o teto como um garoto perdido de amor.
Encontrei a mulher dos meus sonhos.
Uma descrição apropriada. Em que outro lugar ela pode existir senão em meus
sonhos?
Bem, por que não? A mulher dos meus sonhos tem sido sempre inacessível
para mim. Que diferença podem fazer uns meros setenta e cinco anos?
Não consigo parar de pensar naquele rosto. Penso em Elise McKenna e em
como ela seria.
Eu deveria estar lidando com Denver, minha projetada odisséia. No entanto,
continuo aqui como uma massa informe, com o rosto dela impresso na mente. Fui três
vezes lá embaixo. Uma tentativa evidente para fugir da realidade. A mente que se
recusa a aceitar o presente, voltando-se para o passado.
Não obstante... Palavra, mas neste momento sinto-me o objetivo de alguma
sádica brincadeira para ridicularizar-me. Não que exista qualquer tendência à
autocomiseração, porém - Deus do céu! - lançar uma moeda, dirigir mais de cento e
cinqúenta quilômetros rumo a uma cidade que nunca vi, abandonar a auto-estrada por
um capricho, cruzar uma ponte, deparar com um hotel cuja existência ignorava e, nele,
ver a foto de uma mulher morta há tantos anos... e amar, pela primeira vez na vida...
O que é mesmo que Mary costuma dizer? ‘‘Demais para o coração’’?
É exatamente o que acontece.
Estive caminhando na praia. Tomei um drinque na Sala de Descanso Vitoriana.
Olhei novamente para a fotografia dela. Voltei à praia, sentei-me na areia e contemplei
as ondas.
Tudo inútil. Não consigo fugir à sensação. Com rotos fragmentos de
racionalidade, percebo (eu!) que estou em busca de algo a que me agarrar, que esse
algo nem mesmo precisa ser real, e que Elise McKenna transformou-se nele.
De nada adianta perceber tudo. Isso fermenta dentro de mim e se torna uma
obsessão. Quando estive antes no Salão de História, precisei de toda a minha força de
vontade para não quebrar o vidro daquele painel, roubar a fotografia e correr.
Ei! Uma idéia! Posso fazer alguma coisa nesse sentido. Nada que detenha essa
obsessão, em última análise, nada que a piore, segundo todas as probabilidades, mas
posso fazer algo, ao invés de ficar perambulando por aí.
Irei até uma livraria local ou, o mais provável, a alguma de San Diego, procurar
alguns livros que falem dela. Tenho certeza de que existem uns dois, pelo menos.
Aquele programa lá embaixo refere-se a ela como “a famosa atriz americana’’.
Farei isso! Quero descobrir tudo quanto puder sobre meu amor há tanto perdido.
Perdido? Certo, certo. Sobre minha adorada, que nunca soube ser o meu amor porque
só passou a sê-lo depois de morta.
Gostaria de saber onde ela foi sepultada.
Estremeci. A visão de sabê-la sepultada causa-me arrepios. Morto, aquele
rosto?
Impossível.
Recordo-me de que, quando estava na universidade, minha senhoria (a
enfermeira cientista-cristã local, ela própria com oitenta e sete anos) cuidava de uma
velha de noventa e seis, para quem trabalhara no passado. Essa mulher mais velha,
srta. Jenny, era completamente inválida. Além de paralítica, era surda, cega, molhava a
cama, tinha mais vida vegetal que animal. Eu e meu companheiro de quarto
— envergonho-me disso agora — costumávamos irritar-nos, quando ela
chamava, em sua voz frágil e trêmula, “Uh, uh, srta. Ada! Quero me levantar!” Apenas
essas palavras, noite e dia, nos lábios de urna mulher que estava impossibilitada de se
levantar da cama.
Certo dia, quando fui à sala de estar da srta. Ada para usar seu telefone, notei a
foto de uma adorável jovem, usando um vestido de gola alta, de cabelos escuros,
longos e brilhantes: a srta. Jenny quando nova. O mais estranho senso de confusão se
apoderou de mim. Porque aquela jovem me atraía, ao passo que, no mesmo momento,
eu podia ouvir a srta. Jenny, no quarto vizinho, falando com sua voz de velha em sua
cegueira e surdez, em sua total dependência, que queria se levantar. Foi um momento
de aterrorizante ambivalência, com o qual eu não podia lutar muito bem, aos dezenove
anos.
E ainda não posso enfrentá-lo.
O empregado trouxe meu carro e o deixou parado à
frente do hotel. Parece-me estranho, embora só tenha ficado
estacionado no local desde ontem à tarde; assemelha-se mais
a um artefato que a uma propriedade. Também sinto estranheza ao dirigi-lo. Perdi o
senso da direção, da noite para
o dia.
Estive em algumas livrarias de Coronado, mas não encontrei nada.
Aconselharam-me a ir a Wahrenbrock’s, em San Diego. O empregado do hotel
ensinou-me como chegar lá: cruzar a ponte, seguir para o norte pela auto-estrada, sair
na Sixth e descer para a Broadway.
Estou na ponte agora. Posso ver a cidade à frente; montanhas à distância.
Experimento uma curiosa sensação: quanto mais me afasto do hotel, mais me afasto
de Elise McKenna. Ela pertence ao passado. Como o hotel. É uma espécie de
santuário, para cuidar do passado e protegê-lo.
Não há muito tráfego na auto-estrada. Vejo uma indicação à frente: "Los
Angeles”. Querem enganar-me, fazer-me pensar que essa cidade ainda existe.
A saída para a Sixth Avenue está logo adiante.
Mais tarde. Durante a volta, eu mal podia conter os nervos, Meu Deus, como
estou nervoso! San Diego, sincera-mente, deixa-me mal. O ritmo, as multidões, o
estrépito, a opressiva e pulsante atualidade de tudo. Sinto-me desenraizado,
entontecido.
Graças a Deus, encontrei a livraria sem dificuldade e graças a Deus parecia um
oásis de paz, naquele deserto de Agora. Sob nenhuma outra condição eu poderia ter
ficado lá, durante horas, remexendo milhares e milhares de volumes, em dois
pavimentos e um porão atulhados de fascinantes coleções.
Havia uma pesquisa a fazer, entretanto, e eu precisava retornar ao hotel. Assim,
comprei o que havia disponível; não muita coisa, infelizmente. O encarregado da
livraria me disse que, segundo sabia, não havia nenhum livro exclusivamente sobre
Elise McKenna. Suponho então que ela não tenha sido tão importante assim. Não para
o público, não para a história. Para mim, ela é importantíssima.
Vejo o hotel à distância e sou invadido por uma onda de nostalgia. Eu gostaria
que me fosse possível transmitir a sensação de volta ao lar que experimento.
Estou de volta, Elise.
Estou em meu quarto; passa um pouco das três horas. É incrível a forte
sensação que experimentei ao entrar no hotel. Não precisei fomentá-la, como
aconteceu ontem; ela me envolveu num jato. Imediatamente, vi-me possuído e
confortado por ela - o passado que me abraçava. Não consigo descrever de outro
modo.
Certa vez, li um artigo sobre projeção astral: as viagens do chamado corpo
imaterial, que dizem possuirmos, feitas quando dormimos. Minha experiência parece
similar. Foi como se, ao dirigir para San Diego, deixasse uma parte de mim para trás,
presa à atmosfera do hotel, ficando a outra ligada a ele por um longo e fino cordão
elástico. Enquanto me encontrava em San Diego, esse cordão estirou-se ao maximo de
sua capacidade, deixando-me vulnerável ao impacto do presente.
Então, quando voltei, o cordão passou a encolher-se e, à medida que
engrossava, tornou-se capaz de transmitir-me mais da confortante atmosfera. Quando
avistei a estrutura imponente do hotel, elevando-se acima das árvores distantes, quase
gritei de alegria. Quase, não. Gritei mesmo.
Agora estou de volta e recuperei a paz. Cercado por este intemporal castelo nas
areias, tenho quase certeza de que nunca mais voltarei a San Diego.
Escrevo novamente, ouvindo a Quinta, de Mahler, em meus fones de
ouvido - Bernstein e a Filarmônica de Nova York. Linda; eu a adoro!
Bem, vamos aos livros.
O primeiro é de John Fraser, chamado Astros do teatro americano. Olho as duas
páginas de registro sobre ela.
Há uma série de fotos no topo da página esquerda, mostrando-a desde a
infância até a idade avançada. Fico perrurbado ao ver aquele rosto adorável
envelhecer, da esquerda para a direita.
Uma segunda fila mostra três fotos maiores: em uma, ela aparece bem idosa, na
outra, bem nova; a terceira é semelhante à fotografia do Salão de História - aquele
rosto franco e refinado, com os longos cabelos caindo sobre os ombros; a maneira
como ela apareceu em O pequeno ministro.
A terceira fila de fotos mostra Elise usando um traje adorável, com as mãos
pousadas delicadamente no colo; foi extraída de uma peça intitulada Uma rua de
distinção. Em seguida, um instantâneo seu como Peter Pan (então, ela trabalhava
nessa peça), usando o que parece ser um traje camuflado do exército e um chapéu
emplumado, tocando a mesma flauta executada por Pã, naquela poltrona de madeira
do andar de baixo.
A fila inferior a mostra como personagem de suas outras peças: L'aiglon, Pórcia,
Julieta; meu Deus, até mesmo um galo, em Chanticleer!
Na página oposta, uma foto de página inteira a mostra de perfil. Não gosto.
Aliás, não me preocupo com qualquer dessas fotos. Nenhuma possui a qualidade da
que vi primeiro. Isso desperta uma curiosa sensação. Se aquela fotografia
fosse igual a uma dessa., eu teria passado por perto e nada sentiria.
E, agora, eu já poderia estar a caminho de Denver.
Esqueça. Leia.
Um breve relato informa que ela foi uma das mais reverenciadas atrizes do palco
americano, durante muitos anos o maior sucesso de bilheteria do teatro. (Como, então,
não haver nenhum livro sobre ela?) Nasceu em Salt Lake City, a 11 de novembro de
1867, e deixou a escola aos catorze anos, para tornar-se estrela em tempo integral. Foi
para Nova York com a mãe, em 1888, a fim de fazer uma aparição em O pagador.
Apareceu com E. H. Southern. Foi a protagonista de John Drew durante cinco anos,
antes de tornar-se estrela. Era extremamente retraida e evitava a vida social. Embora
frágil fisicamente, dizia-se que nunca faltara a um espetáculo, em roda a carreira.
Jamais se casou, e faleceu em 1953.
Eu gostaria de saber por que ela nunca se casou.
Segundo livro. Martin Ellsworth: História fotográfica do palco americano. Mais
fotografias, embora não ocupem várias páginas; estão espalhadas pelo livro,
mostrando-a em ordem cronológica, desde o primeiro até o último desempenho — de
O garoto andarilho, em 1878, a O mercador de Veneza, em 1931. Uma longa carreira.
Eis aqui uma foto dela, protagonizando Julieta, com William Faversham. Garanto
que esteve ótima.
O pequeno ministro novamente. Uma vez que as representações tiveram início
em setembro de 1896, na cidade de Nova York, aqui deve ter sido uma espécie de
ensaio.
Meu Deus, que torrente de cabelos! Parecem luz em cores, não são louros,
tampouco acastanhados. Ela tem um robe em torno dos ombros e olha para a câmara;
para mim.
Aqueles olhos!
Terceiro livro; Paul O'Neil: Broadway.
Este fala sobre seu empresário, William Fawcett Robinson. Aqui diz que ela
preenchia seus requisitos perfeitamente; a concepção que ele (e a época) faziam a
respeito da atriz ideal. Precedendo em décadas a adulação às artistas de cinerna, ela
foi a primeira atriz a criar uma mística aos olhos do público — jamais vista em público,
jamais citada pela imprensa, aparentemente sem uma vida fora do palco, a quintessência
absoluta do isolamento.
Segundo O'Neil, Robinson aprovava tal sistema. Os dois tiveram atritos até
1897, mas, a partir desse ano, ela se dedicou ao trabalho, sublimando cada faceta da
vida particular à especializaçao no palco.
O’Neil diz que ela possuía uma qualidade mágica como atriz. Mesmo no final
dos trinta anos, Elise era capaz de desempenhar o papel de uma jovem ou um
rapazola. Seu charme, na opinião dos críticos, era ‘‘etéreo, luminoso, cintilante”. O’Neil
acrescenta: “Tais qualidades nem sempre se revelam em suas fotos?’’
Amém a isso.
‘‘Por sob essa ingênua superfície, no entanto, havia uma artista disciplinada, em
especial depois de 1897, quando ela passou a dedicar-se exclusivamente a seu
trabalho.”
O’Neil registra que, não obstante, faltava-lhe o dom natural para o palco. Em
seus primeiros anos, os papéis desempenhados foram mais ou menos um fracasso.
Depois que Robinson passou a ser seu empresário, contudo, ela trabaIhou para
aperfeiçoar-se, com absoluto sucesso; o público começou a adorá-la, embora os
críticos a encarassem como “confessamente encantadora, mas de pouca
profundidade”.
Então chegou 1897, e tanto os críticos como o público a envolveram no que
O'Neil descreve como “um abraço interminável”.
Barrie adaptou para ela seu romance O pequeno ministro. Posteriormente,
escreveu Uma rua de distinção, também para ela, em seguida Peter Pan, depois O que
toda mulher sabe e então Um beijo para Cinderela. Peter Pan foi o seu maior sucesso
(embora seu favorito fosse O pequeno ministro). “Jamais testemunhei semelhante
adulação emocional no teatro”, escreveu um crítico. “Era histérico. Seus admiradores
enchiam o palco de flores.” Em resposta a isso, acrescenta O'Neil, ela fazia a mesma
declaração do palco, já conhecida de todos, breve e ofegante: “Obrigada. Obrigada...
por todos nós, Boa noite”.
A despeito do retumbante sucesso, sua vida particular permaneceu um mistério.
Os poucos amigos íntimos eram pessoas que não pertenciam ao meio artístico. É
citada uma colega atriz, como tendo dito: “Durante muitos anos, ela parecia
absolutamente encantadora e alegre. Então, em 1897, começou a tornar-se a mulher
‘Eu quero ficar só’ original”.
Eu gostaria de saber por quê.
Outra citação, esta atribuída ao ator Nat Goodwin:
“Elise McKenna é uma palavra de uso doméstico. Ela faz jus a tudo o que represente a
verdadeira e virtuosa feminilidade. No apogeu da fama, teceu o próprio manto e o colocou
sobre o pedestal onde permanece sozinha. No entanto, ao contemplar aqueles
olhos de cerva, fiquei curioso. Notei pequenas rugas no rosto mordaz e bruscas linhas
verticais entre as sobrancelhas. A mim, sua pele pareceu seca, os gestos, tensos, a
fala, hesitante. Tive vontade de segurar na minha uma daquelas mãos artísticas e
dizer: ‘Pequenina mulher, receio que, inconscientemente, você esteja perdendo a maior
coisa do mundo — o romance
A essa altura, o que sei sobre ela? Quero dizer, além do fato de amá-la.
Sei que, até 1897, ela foi notável, vitoriosa e competente em sua arte, e que
brigava com seu empresário.
Que, depois de 1897, tornou-se: primeiro, uma reclusa; segundo, uma estrela
absoluta; e terceiro, o conceito de seu empresário, sobre uma estrela absoluta.
A peça de transição, se assim pode ser chamada, foi O pequeno ministro, a
mesma que representou experimental-mente neste hotel, cerca de um ano antes de
estreá-la em Nova York.
O que aconteceu durante aquele ano?
Uma breve seleção do livro final: o volume dois, da História do teatro americano,
de V. A. Bentley.
“Sua ascensão à aclamação dos críticos, após 1896, foi rápida, quase
fenomenal. Embora antes, a despeito de seu sucesso e adulação, ela não houvesse
manifestado nenhum dom realmente notável para a arte dramática, depois disso nao
existiu papel em que não tivesse um desempenho magnífico.”
É feita uma menção quanto a seu desempenho de Julieta representar um
símbolo dessa mudança. Em 1893, ela o representou com uma acolhida menor da
crítica. Quando o repetiu, em 1899, a aclamação foi geral.
Algumas palavras são dedicadas a seu empresário. “Homem de temperamento
excessivamente enérgico, William Fawcett Robinson conquistava a antipatia de quase
todos os que o conheciam. Não contando com a vantagem de uma boa instrução,
ainda assim se mostrou corajoso e arrojado em seus muitos empreendimentos."
Santo Deus! Ele morreu no Lusitania.
Pergunto-me se a amou. Deve tê-la amado. Quase posso captar o sentimento
dirigido a ela. Sem instrução, rude, talvez nunca lhe tenha falado sobre o que sentia,
em todo o período do relacionamento de ambos, esforçando-se ao máximo para
mantê-la elevada e, dessa forma, certificando-se de que também permaneceria
inatingível para outros homens.
Este é o último dos livros.
Estou sentado junto da janela, voltando a ditar. São quase cinco horas, o sol vai
se pondo. Outro dia.
Sinto uma profunda inquietação interior e não consigo resolvê-la, de modo
algum. Por que tenho de deixar-me envolver assim? Ela está morta. Em sua sepultura.
Transformou-se em pó.
Não!
As pessoas do quarto ao lado, que estavam conversando, ficaram
absolutamente silenciosas. Meu grito deve tê-las assustado. Charlie, há um louco no
quarto vizinho, avise a portaria.
Mas... Deus, oh, Deus, eu me odeio por haver dito aquilo! Ela não está morta.
Não a Elise McKenna que eu amo. Essa Elise McKenna está viva.
Será melhor ficar deitado, de olhos fechados. Vamos com calma; você está
perdendo o controle da situação.
Estou deitado na escuridão, perseguido pelo mistério que envolve Elise.
Precisarei tornar-me detetive para solucioná-lo?
Posso tornar-me detetive? Ou estará tudo perdido, enterrado nas areias do
tempo?
Preciso sair deste quarto.
Terá ela, um dia, caminhado por este mesmo corredor? Duvido; era demasiado
famosa. Certamente, foi alojada no primeiro andar, de frente para o mar. Um quarto
amplo, com sala de estar anexa.
Parei. Fico aqui, de olhos fechados, sentindo a atmosfera do hotel impregnarme.
O passado está aqui; não tenho nenhuma dúvida.
Não creio, contudo, que os fantasmas perambulem por este lugar. Muitos
hóspedes chegaram e se foram; dissipariam um espírito individual.
O passado, por outro lado, como um imenso e coletivo fantasma, está presente
aqui, além de qualquer possibilidade de exorcismo.
Estou numa sacada do quinto andar, olhando para as estrelas.
Ao olho humano, as estrelas se movem com imensa lentidão. Considerando seu
movimento relativo, neste momento eu e ela poderíamos, virtualmente, estar
contemplando o mesmo cenário.
Ela, em 1896, eu, em 1971.
Estou sentado no Salão de Baile. Houve algum aconte cimento aqui, mais cedo;
há toalhas de mesa juncando o chão, cadeiras espalhadas por todos os lados. Olho
para o palco onde Elise McKenna representou. Está a menos de quinze metros de
mim.
Agora de pé, caminho para o palco. Os seis lustres gigantescos estão apagados.
A única luz provém de lâmpadas instaladas nas quinas das paredes externas do salão.
Meus sapatos se movem silenciosamente sobre o piso encerado.
Encontro-me agora de pé no palco. Terá sido modificado o seu tamanho ou
formato, desde então? Imagino que sim. De qualquer modo, em O pequeno ministro,
ela teve de caminhar por este mesmo local. Talvez tenha feito uma pausa aqui, até
mesmo parado.
A ciência nos diz que nada pode ser destruído. Em um sentido real, então,
alguma parte dela deve permanecer aqui. Alguma essência que exsudou durante sua
atuação. Aqui. Agora. Neste lugar. Sua presença se funde á minha.
Elise.
Por que sou tão atraído para ela e o que posso fazer a esse respeito? Não sou nenhum
rapazinho. Um jovem poderia gritar: “Eu a amo! !" suspirar, grunhir, revirar os olhos,
apreciar abertamente a catarse. Eu, não. Tenho consciência da insanidade do que
experimento, paralela ao sentimento.
Eu gostaria de ser um rapazinho novamente - sem questionar, sem necessidade
de analisar o momento. Passei por tal sensação, quando olhei para a fotografia dela
pela primeira vez; estava emocionalmente confuso. Agora, impõese a realidade. Sou
impelido simultaneamente para duas direções - ânsia e raciocínio. Em momentos
assim, odeio o cérebro. Ele sempre ergue mais barreiras do que pode transpor.
Sentado na cama, com os fones nos ouvidos, escrevo novamente; desta vez é a
Sexta. Seus sombrios sentimentos refletem os meus .
Quando a fome apertou e procurei comer alguma coisa, o Salão do Diadema já
estava fechado. Assim, comprei um saco de Fritos, um bife sem molho, uma pequena
garrafa de Mateus e soda. Agora, mastigo ruidosamente e bebo um Spritzer Mateus,
com o gelo que pedi à copa. Não acredito que Mahler seja beneficiado de algum modo,
em vista dos ruídos da trituração em minha cabeça.
Estou relendo os livros, à procura de algo mais sobre ela.
Não existe nada mais, entretanto. Estou frustrado. Deve haver mais alguma
coisa escrita a seu respeito. Contudo, onde encontrar?
Deus Todo-Poderoso, Collier! Você fica mais imbecil a cada dia que passa. Nunca
ouviu falar em biblioteca pública?
Pobre Elise! Um imbecil apaixonou-se por você.

14 de novembro de 1971

Zona rural de Los Angeles. O terreno se afunda de um lado e, após a valeta da

estrada, eleva-se na margem aposta. Manhã de domingo. Tranqüila. As aroeiras que

margeiam a estrada agitam sua folhagem brisa.

Quase fora, agora. Longe de Bob e de Mary, de sua casa, de minha casinha de

hóspedes nos fundos; também de Kit, que me visitava enquanto eu trabalhava, batia os

cascos, bufava, sacudia a cauda, gemia e, como falhasse tudo o mais para chamar

minha atenção e potencial alimento, batia o focinho na parede. Acabou-se.

Estou no estacionamento vazio, ao lado dos Correios. É a última visita que faço à

minha caixa postal. Enviei pelo correio meus dois últimos pagamentos para Ma Beli e

The Broadway.

Estou descendo a Long Valley Road em meu carro; sol brilhante e céu azul.

Passo pelas cercas, com suas três ripas horizontais pintadas de branco. Um cavalo me

avalia.

Espero, enquanto lavam meu carro. Há um vazio estranho. Estarão todos na

igreja? Um Mercedes-Benz bege acaba de avançar aos pouquinhos. Eu sonhava ter

um, algum dia. Outro projeto posto de lado. Tomo um caldo de carne, comprado na

máquina automática. Aí vem meu Galaxie azul-escuro. Sóbrio, recomendável e de

preço médio; o tipo de carro ideal para mim. É acolhido pelas mangueiras, que

esguicham longos e finos jatos de espuma.

A última valeta e o quebra-molas final. Mais adiante, a Ventura Freeway e o

mundo. Na tabuleta acima da casa do porteiro, está escrito Adios, amigos. Adeus,

Hidden Hills!

Espero o sinal mudar, junto ao Topanga Boulevard. Ele abriu agora. Uma

rápidamanobra para a esquerda -diminuo a marcha dobro à direita - subo a rampa e

desemboco na Ventura Freeway. Adeus, Woodland Hills! Um dia francamente

maravilhoso. Céu azul radiante; nuvens ralas e pâlidas, quc parecem bandeirolas. O ar

é como vinho branco gelado. Passo pelo Gemco e pelo Valley Music Theatre. Ambos

ficam para trás, deixam de ser reais. Meu jogo agora é o solipsismo.

Antes de vir, joguei uma moeda: cara, norte; coroa, sul. Sigo para San Diego. E

curioso pensar que, se a moeda girasse um-a vez mais, eu estaria chegando a San

Francisco no fim desta tarde.

Minha bagagem é pequena: duas malas. Num-a, estão o terno marrom-escuro, o

paletó esporte verde-escuro, calças, algumas camisas, roupa de baixo, meias, sapatos

e lenços, bem como minha pequena bolsa de zíper, com artigos de toalete. Na outra,

minha vitrola, fones de ouvido e dez sinfonias de Mahler. A meu lado, o velho e fiel

gravador. lenho ainda a roupa do corpo; o indispensável. Exceto, naturalmente os

cheques de viagem e dinheiro vivo. Cinco mil setecentos e noventa e dois dólares e

trinta e quatro cents.

Engraçado! Quando fui ao Bank of America, na sexta-feira, e fiquei na fila,

comecei a impacientar-me. Recordeime então. Não preciso mais me impacientar. Olhei

para todas aquelas pessoas e senti pena delas. Ainda eram escravas do relógio e do

calendário. Dispensado de qualquer obrigação, voltei a acalmar-me.

Acabei de perder o desvio para a San Diego Freeway. Calma. Posso

perfeitamente continuar com meu esquema livre. Acertarei a situação de novo, indo até

o centro da cidade, pegando a Harbor Freeway e alcançando San Diego por outro

caminho.

Um cartaz mais adiante recomenda a Disneylândia. Devo fazer uma visita final

ao reino da fantasia? Não fui mais lá desde 1969, quando mamãe nos visitou. Então,

eu, Bob, Mary e seus filhos a levamos à Disneylândia. Não, a Disneylândia está fora do

programa. Para mim, a única atração lá seria o Castelo Mal-Assombrado.

Outro cartaz. Anuncia: “Aberto agora - O Queen recomenda Long Beach’’. Isso parece

mais provável. Nunca estive a bordo do Queen; Bob foi nele para o estrangeiro,

durante a Segunda Guerra Mundial. Por que não dar uma espiada?

A minha esquerda, o obelisco, a enorme e negra lápide:

Universal Tower. Quantas vezes estive lá, a serviço? É curioso perceber que nunca

mais verei outro produtor, nunca mais prepararei outro script. Nunca mais precisarei

telefonar para meu agente. ‘Ei, pelo amor de Deus, onde está meu cheque? Fiquei na

lona!” Eis aí um pensamento tranqüilo. Também uma perfeita cronometragem; deixálos

quando, afinal das contas, mal existe alguém trabalhando.

Quase chegando ao Hollywood Bowl. Não vou lá desde agosto último. Levei

aquela secretária da Screen Gems. Como era mesmo o nome dela? Joan, June, Jane?

Não consigo me lembrar. Recordo apenas que ela disse ser louca por musica clássica.

Na verdade, a entediava. Da mesma forma que as ninharias no estilo do Bowl.

Concerto número 2 de Rakhmanínov? Joanjunejane nunca ouvira falar nisso.

Qualquer um imaginaria que, após todos esses anos, eu teria conhecido alguém.

Carma negativo? Mau negócio. Nunca, em toda a vida, encontrar uma mulher que nos

agrade? Incrível. Deve existir algo escondido no meu passado, sem dúvida. Obsessão

com meu velocípede. Buuu para Freud. É possível aceitar-se o fato de eu nunca ter

encontrado uma mulher a quem pudesse amar?

Estou no tráfego pesado, perto da Harbor Freeway. Os carros me cercam por

todos os lados. Homens e mulheres em cada canto. Não me conhecem, e não os

conheço. Há bastante nevoeiro aqui embaixo. Espero que o tempo esteja claro em San

Diego. Nunca estive lá; não sei como é. Poder-se-ia descrever a morte dessa maneira.

Music Center. Um lugar estonteante. Fui lá, faz uma semana ou pouco mais,

a.C. — antes de Crosswell. Executaram a Segunda sinfonia de Mahler. Mehta fez um

belo trabalho. Quando o coro entrou suavemente, no movimento final, comecei a vibrar.

Quantas cidades verei? Denver? Salt Lake City? Kansas City? Terei de ficar um

ou dois dias em Columbia.

Um pensamento divertido. Vou me tornar criminoso, pois não pretendo mais

mandar pelo correio nenhum pagamento do carro. E sabe de uma coisa, sr. Ford?

Estou pouco ligando.

Deus!

Um caminhão mudou de rumo, bem na minha frente, e fui forçado a trocar de

faixa rapidamente. Meu coração disparou, pois não houve tempo de ver se vinha

alguem a minha traseira, naquela faixa.

Ainda sinto o coração batendo forte, mas estou aliviado por saber-me a salvo.

Até que ponto alguém pode ser tão imprudente?

Estou vendo as trés chaminés vermelhas, de topo negro. Será que o cimentaram

ali? Já lamento sua condição. Enraizar um navio desses, em algum lugar, é como

empalhar uma águia. A figura pode ser imponente, mas seus dias de glória terminaram.

O Queen acabou de falar; um brado ensurdecedor, que sacode o ar. Como é

grande! Parece o edifício Empire State deitado de lado.

Fiz o pagamento na cabine vermelha, subi pela escada rolante e agora caminho

devagar e com dificuldade, ao longo da passarela coberta, aproximando-me do navio.

À minha direita está o porto de Long Beach, com suas águas azuis, movendo-se

rapidamente. À esquerda, um garotinho, que olha para mim. Quem será o homem

engraçado, falando numa caixa preta?

Outra escada rolante à frente, bem comprida. Qual será a altura do Queen?

Calculo uns vinte andares.

Estou sentado no salão de estar principal. Madeira trabalhada no estilo da

década de 30. É curioso que achassem isso elegante. Colunas imensas. Mesas,

cadeiras. Uma pista de dança. Um enorme piano de cauda no palco.

Uma arcada; lojas circundando uma praça pavimentada de ladrilhos. Luzes no

alto, do tamanho de rodas de caminhão. Mesas, poltronas e sofás. Tudo isso flutuou

um dia?

Espantoso! Seria como no Titanic? Tento imaginar um lugar como este, engolido

pelo mar. uma visão aterradora.

O que me agradaria era esgueirar-me para a parte de baixo; para a parte

escura, onde ficam os camarotes. Caminhar ao longo dos corredores sombrios e

silenciosos. Serão mal-assombradas?

Não irei lá, evidentemente. Obedecerei aos regulamentos.

Os velhos hábitos custam mais a morrer que os seguintes.

No anteparo divisório, uma ampliação fotográfica. Gertrude Lawrence com seu

cachorro branco. Como aquele que apareceu em Oliver Twist, de David Lean; feio,

atarracado e de orelhas pontudas.

A srta. Lawrence sorri. Não percebe, enquanto passeia pelo convés do Queen,

que a mortalidade caminha rente às suas costas.

Vejo fotografias em um painel, intituladas “Cenas memoráveis.”

David Niven, dançando uma jiga escocesa. Parece muito contente. Ele não sabe

que sua esposa morrerá em breve. Contemplo aquele instante congelado e,

desconfortavelmente, sinto-me como um deus.

Lâ está Gloria Swanson, envolta em suas peles. E lá está Leslie Howard; como

parece jovem! Recordo tê-lo visto em um filme chamado Berkeley Square. Lembro-me

dele, viajando no tempo, de volta ao século XVIII.

De certa forma, faço algo parecido neste momento. Estar aqui, neste navio, é

como encontrar-me parcialmente nos anos 30. Isso se aplica também à música

irradiada em torno. Tem que ser música tocada naquela época, a bordo do Queen; tão

própia de seu tempo, tão magnificamente antiquada!

Um anúncio no painel avisa: “Batizado por Sua Majestade, a rainha, em 26 de

setembro de 1934.” Cinco meses antes de meu nascimento.

Sento-me no bar. Entretanto não vejo à minha volta

homens de negócios em seus trajes formais, nenhuma bebida na mesa à minha frente.

Apenas turistas e café puro em uma xícara de plástico, uma maçã dinamarquesa,

assada em Anaheim.

Será que ele se importa? Eu gostaria de saber. Aceitara o Queen esta queda da

graça? Ou isso o enfurece? Eu me enfureceria.

Olho para o balcão do bar, Como seria naquele tempo? Um gim e tônica para

nós, Harry. Um copo de vinho branco. J.B. com gelo, por favor. Agora, sanduíchessubmarino,

leite gelado e café fervendo.

Há um mural acima do balcão. Pessoas dançando, de mãos dadas, formando

uma longa fileira oval. Quem serão? Todas congeladas, como este navio.

Sinto uma sensação estranha no estômago. Algo como a impressão que se tem

ao ver-se um filme de corridas de um ponta de vista tomado do interior do carro; meu

corpo sabe que está sentado e imóvel, mas, visualmente, viajo em vertiginosa

velocidade, e o contraste irreconciliável me deixa com nauseas.

Aqui a sensação se inverte, mas é igualmente descontortante. Sou eu que me

movo, enquanto o ambiente do Queen permanece fixo. Tem sentido? Duvido,

Entretanto, este lugar começa a me deixar arrepiado.

Alojamentos dos oficiais. Não há mais ninguém aqui além de mim, entre dois

grupos de turistas. A sensação agora é intensa; algo pressionando meu plexo solar. Os

sons a acentuam; comunicados feitos então a bordo do Queen:

Srta. Molly Brown, por favor, queira entrar em contato com o Departamento de

Informações”. O Insubmersível?

Soa uma campainha enquanto olho o interior da sala do comandante. Seriam as

pessoas menores naquela época? As cadeiras me parecem de tamanho abaixo do

normal. Outro comunicado: Há um telegrama para Angela Hampton, no gabinete do

comissário de bordo”. Onde estará Angela agora? Teria recebido o telegrama? Espero

que as notícias tenham sido boas.

Convites na parede. Uniformes pendurados e imóveis, atrás de vitrines. Livros

nas prateleiras. Cortinas, relógios.

Uma escrivaninha e um pálido telefone branco. Tudo suspenso, estático.

Ponte de navegação: o Centro Nervoso, como eles o chamavam. Polida,

brilhante e morta. Aquelas rodas nunca mais tornarão a girar. Aquele telégrafo nunca

mais expedirá ordens para a sala de máquinas. Aquela tela de radar permanecerá

escura para sempre.

Tive de abandonar a parte do navio aberta aos turistas. Ainda me sinto estranho.

Estou sentado num banco, no museu. Aqui é tudo extremamente moderno, sem

sincronismo com os lugares onde estive. Sinto-me deprimido. Afinal, por que vim aqui?

Foi uma péssima idéia, Preciso de uma floresta, não de uma casa mortuária encaixada

entre terras.

Muito bem, tudo certo, irei até o fim. o meu sistema Nunca deixar nada pela

metade. Nunca pôr um livro de lado, por monótono que seja. Nunca abandonar uma

peça, filme ou concerto pelo meio, por tediosos que sejam. Coma tudo o que estiver no

prato. Seja polido com os mais velhos. Não chute os cachorros.

Levante-se, droga! Mova-se!

Estou caminhando pela sala principal do museu. Meus olhos são atraidos pela

gigantesca ampliação de uma primeira página de um jornal: The Long Beach Press-

Telegram. As manchetes anunciam: O CONGRESSO DECLARA GUERRA.

Meu Deus! Toda uma divisão a bordo deste navio! Bob também passou por essa

experiência. Comeu num bandejão como aquele, usou garfos e facas como aqueles.

Vestiu uma comprida capa marrom como aquela, usou um gorro de lã marrom, um

capacete com um revestimento daqueles, botas de combate iguais àquelas. Carregou

uma sacola de tecido grosso como aquela e dormiu num beliche como um daqueles,

com três camas uma em cima da outra. Essas seriam as cenas memoráveis de meu

irmão no Queen. Nada de jigas escocesas ou de passeios com um cão branco, de

orelhas pontudas, Apenas dezenove anos e cruzando um oceano, rumo à morte

provável.

Novamente a mesma sensação. Um caroço entorpecido, pendurado no

estômago.

Mais cenas memoráveis Dominós. Dados em um copo

de couro. Um lápis mecânico. Livros para cultos religiosos:

protestante, católico, judeu, mórmon, cientista-cristão -aquele livro velho, familiar.

Sinto-me como um arqueólogo fazendo escavações num templo. Mais fotografias. Sr. e

sra. Don Ameche. Harpo Marx. Eddie Cantor. Sir Cedric Hardwicke. Robert

Montgomery. Bob Hope. Laurel e Hardy. Churchill. Todos suspensos no tempo,

sorrindo eternamente.

Tenho que ir embora.

Estou novamente sentado em meu carro, esgotado, vazio. Será isso o que

sentem os paranormais quando entram numa casa que se encontra cheia da presença

do passado? Um desconforto coleante e distorcido aumenta em mim constantemente,

O passado está naquele navio. Duvido que perdure por muito tempo, com toda aquela

gente enxameando por lá. Deverá dissipar-se em breve, mas, no momento, está lá.

Bem, de novo, talvez fosse apenas a maçã dinamarquesa.

São duas e vinte, e estou rodando para San Diego, enquanto ouço uma música

fantástica, cacofônica; sem qualquer linha melódica ou conteúdo.

Céus, lá vou eu novamente! Retido por um trailer, forçado a mudar de faixa,

aumentando a velocidade e ultrapassando, lutando para firmar minha posição. Não

pode ser objetivo, R.C.?

A música terminou. Nem me lembro o que era. Agora, começou Ragtime para

onze instrumentos de sopro, de Stravinski. Desliguei o rádio.

A essa altura, Los Angeles já desapareceu de vista. Também desapareceram

Long Beach e o Queen. San Diego é uma fantasia. Aqui está a realidade: esta fita que

é a auto-estrada, desenrolando-se à minha frente.

Em que lugar de San Diego vou parar - - supondo, naturalmente, que San Diego

exista? Que diferença faz? Encontrarei um lugar e sairei para comer, talvez num

restaurante japonês. Verei um filme, lerei uma revista ou farei uma caminhada, tomarei

um drinque, arranjarei uma garota e, numa doca, atirando pedras nos barcos, decidirei

quando chegar lá. Os horários que vão para o diabo!

Ouça aqui, garoto, alegre-se! Vai ser um barato! Há meses e meses pela frente!

Há um restaurante de frutos do mar. Acho que começarei comendo peixeespada.

Abro minhas refeições com pratos de vichyssoise ‘‘Bon Vivant”.

San Juan Capistrano não funciona.

Experimento uma sublime sensação de aniquilar comunidades inteiras, com um

só golpe de vontade.

As nuvens à frente são como montanhas de neve, empilhadas em forma de

gigantescos castelos contra o céu azul.

Nenhum excêntrico, afinal. Acabei de ligar o rádio novamente. Tocam Les

préludes, de Chopin. A música do século XIX me convém mais.

As nuvens agora assemelham-se a fumaça, Como se o mundo estivesse

ardendo.

Aquela sensação está voltando ao meu estômago. Não tem sentido, agora que o

Queen ficou para trás.

Acho que, afinal de contas, foi a maçã dinamarquesa.

O tráfego se avoluma, quando entro em San Diego propriamente dita. Tenho

que me safar dele.

Não existe um lugar chamado Sea World por aqui? Acho que sim. Para ver uma

baleia saltando por um aro.

Centro da cidade. Estou ficando encurralado. Cartazes publicitários brotando

como cogumelos. Mal passa das quatro. Começo a ficar nervoso.

Por que vim aqui? Tudo agora é ilógico. Duzentos e seis quilômetros para quê?

Rumarei para o leste amanhã. Vou acordar cedo, dar um jeito na dor de cabeça

e partir para Denver.

Meu Deus, é como voltar a Los Angeles! Estou cercado de faixas pululando de

carros, luzes vermelhas piscando, rostos irritados de motoristas.

Ah! Urna ponte à frente. Pouco importa para onde me leve, desde que eu saia

disso.

A sinalização diz “Coronado”.

Dirijo diretamente contra o sol. Os raios me ofuscam. Um disco ígneo e dourado.

Penhascos à distância o oceano Pacífico.

O que será aquilo á beira da água? Uma estrutura imensa e fantástica.

Vou pagar o pedágio e dar uma espiada.

Acabei de dobrar à esquerda e entro na A Avenue. O lugar parece antigo. Há um

chalé inglês à minha direita. Acabou-se o trânsito. Rua sossegada, marginada de

árvores. Talvez eu possa pernoitar aqui. Deve existir um motel em algum lugar. Há uma

casa antiga, semelhante a uma mansão do século xix. Construída de tijolos; janelas

com sacada, chaminés gigantescas.

Será mais alta na fachada? Olho para aquela torre de telhado vermelho.

Não acredito.

Rodei pelo lugar errado. Estou num estacionamento, atrás do edifício. Deve ter

sido construído há sessenta ou setenta anos. É enorme. Cinco pavimentos, pintado de

branco, com teto de telhas vermelhas.

Preciso descobrir a fachada.

Há um motel no caminho, caso isso não seja - é um hotel!

Estou no quarto 527, olhando para o mar através da janela. O sol está quase se

pondo; é uma vivida fatia alaranjada acima do horizonte, à esquerda de uma escura

fileira de penhascos. Ninguém na faixa de praia cinza-pérola. Posso ver e ouvir as

ondas, um ribombar atroador. Passa pouco das quatro e meia. Este é um lugar tão

sossegado, que talvez fique aqui por mais de uma noite!

Preciso ver os arredores.

Embaciado pelo crepúsculo, o pátio parece irreal; amplo, com paredes curvas e

relvados verdejantes, bem aparados, O céu é como um pano de fundo pintado, de

estúdio. Talvez este seja o sul da Disneylândia.

Antes, cheguei com meu carro até a entrada do hotel e um empregado o

estacionou. Um porteiro tomou conta de minha bagagem; pareceu um tanto assustado

com o peso de minha segunda mala. Eu o segui por uma rampa revestida de carpete

vermelho até a sala de estar, contornei um banco

de metal que sustinha um vaso de plantas no centro, passei para o saguão, assinei o

livro de registro e fui conduzido por esse pátio. Havia pássaros fazendo tremenda

algazarra nas árvores, tão copadas, que nem mesmo pude vê-los.

Agora, as árvores estão quietas, o pátio está quieto. Contemplo-o da sacada do

quinto andar; olho pata as mesas com guarda-sóis entre canteiros floridos. Este é um

lugar quimérico.

Vejo uma bandeira americana, tremulando no alto da torre. O que haverá lá? Eu

gostaria de saber.

Estou faminto demais para esperar o jantar; às seis da tarde no Parlatório

Príncipe de Gales, às seis e meia no Salão do Diadema. São apenas cinco. Se eu

beber durante uma hora, ficarei fora dessa jogada, e não quero que isso aconteça.

Pretendo saborear este lugar.

Estou sentado no Salão do Diadema quase vazio, perto de uma das janelas

panorâmicas; perguntei e informaram que ainda podiam servir-me um almoço simples.

Anexo, fica o Salão da Coroa, usado apenas para banquetes, suponho. Lá fora, vejo o

lugar para onde me dirigia antes. Teria isso acontecido há quarenta minutos apenas?

Este salão é lindo! Paredes forradas de fazenda com uma tessitura vermelho-dourada,

tendo acima painéis de madeira de precioso acabamento, que se curvam para um teto

da altura de três ou quatro pavimentos. Mesas com toalhas brancas, velas acesas em

tubos amarelo-escuros, taças de metal esperando pelos hóspedes que virão jantar.

Tudo com aparência de extrema graciosidade.

A garçonete acabou de trazer minha sopa.

Tomo agora uma soberba e consistente sopa de feijão branco, com pedaços de

presunto. Delicioso. Estou realmente faminto. Poderá ser insípida, a longo prazo, mas

no momento é uma iguaria. Este salão fantástico. Esta sopa, quente e saborosa.

Pergunto-me se tenho dinheiro suficiente para ficar aqui indefinidamente. A vinte

e cinco dólares diários, minhas reservas não durariam muito. Suponho que eles tenham

preços especiais para hóspedes mensalistas, porém, ainda assim, eu chegaria à

indigência antes de partir.

Por quanto tempo este hotel esteve aqui? Há um papel com informações em

meu quarto; verei isso mais tarde. De qualquer modo, é uma construção antiga. A

caminho do saguão, percorrendo um corredor do porão que parte do Parlarório

Príncipe de Gales, passei por um bar antigo e maravilhoso, com um balcão palaciano;

tenho de tomar um drinque lá, amanhã. Também vi uma arcada com uma barbearia e

uma loja de jóias, espreitando de uma sala lateral, repleta de máquinas de jogos. Olhei

de relance para algumas fotos de época na parede. Também pretendo examiná-las

mais tarde. Depois que alimentar meu corpo esfomeado.

Agora está demasiado escuro para que se veja bem o exterior. Há árvores

sombrias nas proximidades, alguns carros estacionados e, além de tudo, as luzes

multicoloridas de San Diego, brilhando à distância. Na janela se reflete o imenso

anúncio luminoso, uma coroa de luzes suspensa na noite. Aqui não é como estar no

ancorado e invadido Queen Mary. Aqui é o Queen ainda dominando os mares.

Apenas um detalhe errado: a música. Inadequada. Devia ser algo mais suave.

Um quarteto de cordas, executando Lehár.

Estou sentado numa gigantesca cadeira de braços, no mezanino, acima do

saguão. À minha frente há um enorme candelabro, com fieiras de lâmpadas vermelhas

e colares de cristal pendendo da parte inferior, O teto é intrincado e de aparência

maciça, escuras seções apaineladas e extremamente polidas. Posso ver uma pesada

coluna apainelada, a escadaria principal e a porta de grades douradas do poço do

elevador. Vim por outra escadaria Havia silêncio nela e pude senti-lo na carne.

A poltrona é qualquer coisa de notável. O espaldar termina muito acima de

minha cabeça. Dois garotos rechonchudos flanqueiam seus arabescos. Ambos os

braços da cadeira terminam em dragões alados, cujas escamosas formas de serpente

se estendem até o assento. Onde os braços se juntam, na parte de trás, reclinam-se

duas indolentes figuras: um Baco de ar infantil, a outra, um Pã de olhar fixo e patas

peludas, tocando flauta.

Quem terá se sentado nesta poltrona antes de mim? Quantas pessoas já

espiaram para o saguão, através da balaustrada, observando homens e mulheres

sentados, de pé, conversando, entrando e saindo? Nos anos 30, 20 e 10.

Até mesmo na década de 1890?

Estou sentado na Sala de Descanso Vitoriana, com um drinque na mão, olhando

para o vitral de uma janela. Um belo aposento. Cabinas forradas em vermelho-vivo;

paredes que parecem veludo. Colunas apaineladas, quadrados apainelados no teto,

um lustre com pendentes de cristal.

Nove e vinte da noite. Depois de uma ducha, com as pernas cansadas, deito-me

na cama e leio a folha de informações. Este prédio foi construído em 1887. Incrível. E

eu sabia que algo nele me era familiar. Infelizmente, nada de déjà-vu. Billy Wilder o

usou para filmar Quanto mais quente melhor.

Várias citações do papel com informações:

“Estrutura semelhante à de um castelo” -

“O último dos hotéis à beira-mar, prodigamente concebido.”

“Um monumento ao passado.’

“Torrinhas, altas cúpulas, pilares de madeira trabalhada e decoração vitoriana.

Ouço um som que não ouvia desde criança: as batidas surdas de um radiador.

Silêncio espantoso nos corredores. Como se o próprio tempo houvesse se

acumulado neles, enchendo o ambiente.

Gostaria de saber se também este quarto ficou cheio. Haverá dentro dele algo

que sobrou dos anos passados?

Aquele carpete pontilhado de dourado-castanho-amarelo? Duvido. O banheiro?

Provavelmente, na época nem havia banheiros. As cadeiras de vime? Talvez.

Evidentemente, não as camas, mesas-de-cabeceira ou abajures; e Deus sabe que

tampouco o telefone. A estamparia das paredes? Improvável. As cortinas ou

venezianas? Nada disso. As próprias vidraças devem ter sido substituidas, não há

dúvida. A escrivaninha ou o espelho pendurado acima dela? Não creio. A cesta de lixo?

Certo. E que tal o aparelho de televisão? Ah, ah, ah!

Afinal, bem pouco do passado existe aqui. Uma lástima.

Meu nome é Richard Collier. Tenho trinta e seis anos e escrevo para a televisão.

Tenho um metro e oitenta e cinco de altura e peso oitenta e cinco quilos. Dizem que

sou parecido com Newman; talvez se refiram ao cardeal. Nasci no Brooklyn, a 20 de

fevereiro de 1935, quase fui para a Coréia, mas a guerra acabou antes, e diplomei-me

pela Universidade do Missouri, em 1957, como bacharel em jornalismo. Depois de

formado, trabalhei na ABC, em Nova York, comecei a vender scripts em 1958 e mudeime

para Los Angeles em 1960. Meu irmão transferiu sua gráfica para Los Angeles em

1965, e eu me mudei para a casa de hóspedes, nos fundos de sua casa, nesse mesmo

ano. Saí de lá esta manhã, porque vou morrer dentro de quatro a seis meses e achei

que pode-ria escrever um livro a esse respeito, enquanto viajo.

Gastei uma verborréia para dizer isso. Está bem, está dito. Tenho um tumor

inoperável, no lobo temporal. Sempre pensei que as dores de cabeça matinais fossem

provocadas pela tensão. Por fim, fui ao dr. Crosswell; Bob insistiu, ele mesmo me levou

de carro até lá. O grande e durão Bob, que dirige a firma com mão de ferro. Chorou

como criança, quando o dr. Crosswell nos contou. Eu, o que tinha o tumor, Bob, o que

chorou. Homem maravilhoso!

Tudo isso aconteceu há menos de duas semanas. Até então pensei que viveria

muito tempo ainda. Papai se foi aos sessenta e dois anos, mas apenas porque bebia

demais. Mamãe, aos setenta e três, saudável e ativa. Imaginei que teria tempo de

sobra para me casar e constituir família; jamais entrei em pânico, mesmo parecendo

nunca tomar conhecimento Dele. Agora, está liquidado. Raios X, punções na espinha,

resultados positivos. Fim para Collier.

Eu podia ter ficado com Bob e Mary. Faria tratamentos de raios X. Viveria alguns

meses a mais. Vetei tudo. Bastou-me ver o olhar que eles trocaram; um olhar dorido,

desajeitado e incômodo, aquele que as pessoas sempre parecem trocar na presença

dos moribundos. Vi que precisava fugir. Não podia ficar lá, vendo aquele olhar, dia

após dia.

Estou escrevendo esta parte, em vez de ditá-la em meu gravador. De certa forma, foi

um mau hábito que adquiri, o de produzir scripts inteiramente em fitas cassete. Não

ébom para um escritor perder a sensação de colocar palavras no papel.

Não posso ditar agora, pois estou ouvindo a Décima, de Mahler, com os fones

de ouvido. Ormandy, a Filadélfia. É um pouco difícil ditar se não ouvimos o som de

nossa voz.

Cook fez um trabalho fantástico, orquestrando os sketches. Soa exatamente

como Mahler. Talvez não com tanta riqueza, mas uma obra indiscutivelmente sua.

Não sei por que adoro a música de Mahler; ela apenas veio a mim. Ele está presente

na melodia. Como o passado que impregna este hotel, também Mahler impregna seu

trabalho. Está em minha cabeça neste momento. “Ele vive em seu trabalho” é uma

frase corriqueira, raramente pertinente. No caso de Mahler, é a verdade literal. Seu

espírito reside em sua musica.

Agora é o movimento final. Sem que eu possa evitar, surge aquela frouxidão no

canto dos olhos, degluto-a, e a emoção me dilata o peito.

Terá havido algum adeus à vida mais arrebatador, expresso em música?

Deixem-me morrer com Mahler na cabeça.

Olho para um rosto no espelho. Não o meu rosto, mas o de Paul Newman, por

volta de 1960. Olhei tanto tempo para ele, que me senti objetivo a esse respeito. As

pessoas costumam fazer isso às vezes; ficam olhando para o próprio reflexo no

espelho, até que — zás! — há um rosto desconhecido a olhá-las também. Por vezes,

também um rosto amedrontado que as contempla, tão estranho ele é.

A única coisa que me mantém na realidade são os lábios de Paul Newman que

se movem, e ele pronuncia as palavras que me ouço pronunciando. Portanto, deduzo

que o rosto seja meu, embora inexista qualquer senso de conexão com ele.

O garoto dono desse rosto era bonito; essa era a palavra usada, e ele a ouvia o

tempo todo. De que adiantou? Adultos - até mesmo estranhos - sorriam-lhe e, inclusive,

afagavam seus cabelos louros quase brancos enquanto lhe observavam as feições

angelicais. De que lhe adiantou? As garotas o olhavam também. Via de regra, de

esguelha. Por vezes, de frente, O garotinho perdeu a conta de seus rubores. E também

dos sangramentos; os valentões adoravam esmurrar aquele rosto. Infelizmente, o

garoto suportava bem o sofrimento. Assim foi, até que eles o encurralaram num canto,

a tal ponto que até mesmo ele perdeu o controle e revidou. Pobre garoto, que não

pedira aquele rosto! Jamais tentou tirar proveito disso. Felicitou-se por se tornar adulto,

fase em que a maioria dos valentões passa a empregar táticas menos óbvias.

Diabo, aqui estou falando do meu rosto. Por que fazer o jogo da terceira

pessoa? Sou eu, pessoal! Richard Collier. Muito atraente. Posso falar assim quanto

quiser. Não há ninguém ouvindo pelo buraco da fechadura. Aí está, mundo! Tolice! Que

bem fez a beleza ao sujeito atrás dela? Poderá salvá-lo? Esse rosto se erguerá para

liquidar o tumor traiçoeiro? Não há a menor possibilidade. Assim, em resumo, esse

rosto é inútil, porque não pôde manter seu dono neste mundo, nem um dia a mais do

que os que lhe foram determinados. Bem, as minhocas terão um belo piquenique

— Deus, que coisa desagradável de dizer!

Que coisa estúpida, idiota de dizer.

Quase meia-noite.

Deitado na escuridão, ouço o barulho das ondas. Como canhões disparando à

distância.

Estas são as piores horas.

Gosto deste lugar, mas, evidentemente, ficarei apenas alguns dias. De que

adiantaria outra coisa?

Dentro de poucos dias, levanto-me pela manhã e parto para Denver, tudo

apontando o leste.

E alguém aponta o oeste.

Não seja sentimental, Collier!

Quatro e vinte e sete da madrugada. Vou me levantar e beber água. Esse sabor

de cloro não me agrada em absoluto. Seria bom poder contar com algumas Sparklett,

como eu tinha em casa.

Casa?